Este artigo de Leandro Ortolan tem por objetivo abordar o relato espiritual depois da morte, de uma consciência chamada de Maria Cândida, que foi causada pelo câncer.
Minha morte foi lenta, bem diferente da minha vida.
Minha vida passou. Apenas passou, sem tempero, sem nenhum sabor. De fato, percebi que tinha uma vida foi somente ao saber que ela brevemente iria terminar. Me fez perceber realmente que não era eterna, que o tempo era mesmo finito e implacável. Todos dizem isto, mas poucos encaram o peso deste fato: há uma data de validade para todos.
Lembro de que não tive medo, só indignação, uma raiva por parir uma verdade que não queria confrontar. O medo veio mais tarde. A verdade parida? Depois de toda uma vida me dedicando aos outros, pouco vivi para mim, pouco aproveitei, e não teria mais oportunidades com aquele câncer que já estava a me consumir, e que facilmente venceria a luta nos meses seguintes.
A verdade é que eu sabia que mentia para mim mesma, mas chamava a isto como altruísmo, resignação, caridade ou mesmo humildade… tantos nomes, tantos conceitos para me fazer presa a minha própria vida. Vivendo apenas um pedaço pequeno dela.
Tão pouco tempo, tudo tão pouco… pouco era uma palavra que me definia muito bem. Eu era um pouco de tudo – e nada de nada. Já não sabia quem eu era e nem o que eu fiz, pois era tudo pouco. Antes mesmo de o meu corpo dar seu último suspiro, já me sentia como as cinzas a que fui reduzida na minha cremação. Bem antes já era pó, um punhado encardido de pó, a buscar perceber o que estava a passar.
E, assim, enquanto eu morria a cada dia, até o último suspiro, o câncer adquiria vida, a materializar-se em uma nova personalidade, uma entidade que me acompanhava, a qual eu interagia perfeitamente, mesmo sem palavras, e diferente de outras pessoas pois era uma relação de igualdade, em profundos diálogos sobre tudo o que passara a presenciar desde que a sensação da morte surgiu por ele, que se fortalecia-se enquanto eu perdia forças. Ele adquiria sabedoria enquanto eu percebia a minha própria ignorância. E gostei de vê-lo usar da minha vida, aproveitar o que não aproveitei.
Pois, com o câncer, foi a primeira vez em que recebi de alguém a máxima sinceridade, longe da dualidade ambígua dos falsos, de seus posicionamentos polidos, sempre a desejar de mim o que eu tinha a dar, a me manterem anestesiada em um mundo de mentiras que me pareciam tão convenientes e reconfortantes.
Pelas minhas ilusões, pude perceber que tais mentiras que contava a mim mesma só eram mentiras porque a verdade me era conhecida. Eu conhecia a verdade, já dita, ou parte dela, mas as conveniências das mentiras me traziam melhor sensação. E assim fiz, parti a fazer más escolhas, que não me permitiram evoluir, mas me deixaram confortável, até que as verdades ficassem muito distantes, esquecidas no tempo.
Pois então tudo mudou e as verdades emergiram do fundo de mim, provocado por um sincero inimigo chamado câncer: este não me mentia, e estava ali a mostrar-me novamente a verdade, sem escolhas, nem amenidades, e estava a me consumir, a me destruir e a me colocar o futuro iminente da minha morte, do meu próprio fim, de me fazer ver a minha incapacidade de vencer. Pois logo ele iria subjugar-me a um punhado de pó, impossível de fazer frente a uma simples brisa, que me levaria tão fácil como tudo que é quase inexistente quanto a poeira.
Pela primeira vez pude perceber que minha vida não lá tinha grandes feitos, pois nunca tive um verdadeiro oponente – tudo veio e aceitei o que vinha, sem agir por minhas próprias capacidades, sem escutar minhas ambições mais simples. Não enxergava nada além do que meus sentidos básicos me ofereciam. Não tentei ver o que estava por detrás das aparências. Como dito, apenas um pouco de tudo, até dos próprios sentidos.
O câncer estava a me acordar para a vida, mesmo com suas dores que a cada semana cresciam e atingiam novos pontos do corpo. E esta era a contraditória sensação que tive da vida. Pois só ao perceber a morte, pude perceber a vida. Só assim.
Com esta percepção despertada da vida, pude viver o momento, receber visitas de todos os que estavam vivos e tinham em mim alguma consideração, ou motivo, para retornarem para um derradeiro encontro. Entre sessões de tratamentos, vômitos incessantes e doses nauseantes de remédios, recebia visitas que sempre me espantavam. Quem eram, afinal, aquelas pessoas? Como não pude vê-las como sempre foram? Aquelas pessoas me conheciam, mas eu não as reconhecia mais como eram. As via com os olhos da verdade.
Estavam ali, a sentirem pena de mim. Me olhavam com uma falsa misericórdia e falavam o que sempre falavam – não mudaram em nada a forma de falar, apenas leves nuances. E isto foi o pior para mim de todas estas visitas. Pois, se estavam a ter pena, misericórdia, e falavam daquele jeito, antes também agiam da mesma forma, embora eu não conseguisse perceber, desde que perdi meu marido e nossos dois filhos, em um trágico acidente. Me escondiam uma realidade no presente como sempre me esconderam no passado.
E assim, sendo provocativa pela primeira vez, sempre levava a conversa para o desfecho final. Falava para elas sobre meus desejos para o funeral e para a cremação, sobre não chorarem pela minha morte e percebia em mim um mórbido prazer das reações que todos tinham, da surpresa ao riso.
Algumas com preocupações em dizer que nada aconteceria, que deveria ter fé que venceria a doença, uns convites para sessões mediúnicas de cura, xamãs, ou outra coisa mística ou religiosa, absurdos e delírios que nunca acreditei, mas que sempre participava para atender aos desejos de todos. Já não me persuadiam, pelo contrário, pude ver a minha ingenuidade, e a delas. A ignorância era, ali, a nossa pior doença.
O fim chegará para todos. Pensar sobre ele ou não, não fará a menor diferença. A diferença é sobre o pensamento da vida, pois esta sim pode ser alterada. Aliás, pensar sobre a vida enquanto ela ainda está a correr. Enquanto ainda há o que realizar.
Minha vida, com cada uma destas pessoas, passava como um filme, com enredos diferentes, mas com final igual, obviamente. E sempre, mesmo com diferentes histórias e situações, sempre me via da mesma forma. Eu estava sempre a servir, sem viver, sem questionar nada, aceitando tudo como todos queriam, fazendo as vontades e os gostos. Percebi que já estava morta, desde a juventude.
Meu casamento, o nascimento dos meus filhos, e outros raros momentos em que minha vida aconteceu, em exceção. Poucos. Raros. Distantes.
No resto, agia de forma automatizada, nunca pelas minhas próprias crenças, meus próprios desejos, minha própria vontade. Era um verdadeiro robô, uma sonâmbula em vida, mas não a única, pois era igual a todas as outras pessoas que me aprisionavam tanto quanto eu as aprisionava. Era como se pertencesse a um grupo maior, sendo uma célula de um todo, sem pensar individualmente. O que eu queria fazer, não fazia.
Meus sonhos de infância, meus desejos sexuais abafados, sem amar o proibido, de sumir por paixões, drenar minha vontade de viajar o mundo, minhas ambições de ter uma profissão diferente, de reclamar o que me roubaram, formar uma nova família, de contestar o que eu escutava, de não fazer o que eu fazia, de não me permitir o simples prazer que eu sempre desejei, nada disto mais seria possível. Eu me deixei levar, e fiz parte de um mundo em que todos são sonâmbulos, que não existem completamente, que não fazem de si algo melhor, apenas fazem parte de algo, sem nunca ser algo em si.
Fazer parte pode ser bom, e por vezes até necessário, mas não é tudo. Ser o todo, mesmo que por breves instantes, é o que eu mais desejava ter vivido. E nunca pude ser além dos breves momentos que citei. E também naqueles momentos de lucidez, causadas pela dor, pelo fim, pela escassez do tempo, pela implacabilidade da morte.
Só restou, para mim, o câncer. Este sim, estava a ser útil para algo.
Afinal, teria que decidir se o câncer era mesmo um inimigo ou um novo amigo. Responder a esta mórbida questão me pareceu de extrema importância. Assim, optei por aceitá-lo como amigo, e em outras vezes, inimigo, mas não só isto, pois na maioria das vezes era um mestre, uma espécie de mentor que estava a me guiar em meus derradeiros dias daquela existência.
Um mentor faz abrir os olhos, não conforta nem apavora. Apenas mostra a realidade, e ajuda a apreciar o que há na verdade, a dissolver as mentiras, as ilusões. Para o mentor, o mais importante é fazer o outro se libertar. Ao se libertar de tudo, inclusive de si, seu trabalho está bem feito. E, libertar-se, portanto, é cultivar a independência, o domínio sobre si e sobre o meio em que está inserido, é agir pelas suas próprias capacidades inteligentes e atingir um nível de viver o que está adequado a si.
E era exatamente isto que o câncer estava a me fazer. Portanto, de inimigo passou a amigo. De amigo, passou a mentor. Não o amava, mas também não tinha mais ódio em meu coração. Aceitava-o como instrumento de uma força maior. Eu percebia na morte o fracasso da minha vida, mas também a passagem para algo que ainda não estava a compreender.


Sem referências e feliz. Nada do que li dos romances espiritualistas me significavam algo naquele momento. Percebia a ficção que envolve tudo o que há no planeta, a incluir as religiões que consolam somente as dores que elas mesmas criam, muito mais anestesiantes do que despertadoras. Gente que leva à aceitação e evita o conflito. Não há como lutar contra a morte.
Se eu não lutei por mim, a morte estava a fazê-lo, como minha aliada. E assim o fez. Tirou-me do conforto do mundo e jogou-me na quente panela, a fritar comigo, a me fazer arder de raiva, paixão, desejos, culpas, mágoas, medos e vergonhas. E com uma plateia a me acompanhar.
Dinheiro, bens, status, títulos, favores, privilégios, segredos… ah, doces ilusões que um dia tive. Certa vez, para uma pessoa querida que estava a me pedir algo, ao mostrar as boas coisas que o câncer estava a me fazer, me teve como agressiva e insana. Não percebeu o bem que havia naquela situação. Sim, fui irônica, mas verdadeira. Foi a última vez que a vi enquanto viva, mesmo dando o que me pediu. Não mais retornou, pois da verdade da morte ela também já sabia, como eu já conhecia, mas optava, como eu, por viver uma mentira, enquanto ela durasse.
Poucas semanas depois deste encontro, eu finalmente morri. Uma manhã chuvosa de outono. Apenas fui, a deixar aquela fração do corpo que já fora antes. Deprimido, diminuído, murcho, morto. Meu espírito alçou voo quando o corpo nada mais significava para mim, alguns dias após o funeral.
Neste voo simbólico, veio a luz, e com a luz a cegueira, que me impedia de ver algo, sentia muitas coisas, mas nada via. Escutava vozes, mas nada entendia. Sentia odores mas nada identificava. Apenas o branco, apenas os sentidos falhos, durante um tempo que nem sei definir, e que fiquei neste estado, que pode ter durado segundos ou milênios, e mesmo assim, sem nada ao redor, me sentia viva como nunca havia sentido antes, completamente libertada.
Após o funeral, que acompanhei com grande lucidez, veio um certo torpor, uma certa demência, quando as coisas deixavam de ter formas e passavam a se dissolver. Como seu eu olhasse para alguém e visse não só a pessoa, mas inúmeras personalidades que ela tinha afinidade, e depois tudo se dissolvesse. Nada era como antes.
Sentia tudo o que todas estas personalidades me mandavam: palavras, emoções, sentimentos, desejos, vontades, injúrias, nada me escapava. E todas as informações estavam a me transformar, a me desintegrar. Já não sabia quem era, até me dissolver por completo, e testemunhar este vazio que estou a lhe descrever, o branco absoluto, a cegueira luminosa.
Muitas coisas aconteceram, algumas que nem poderia explicar ou tentar descrever, pela limitação das palavras e conceitos desta dimensão material em que estas palavras se mostram, uma dimensão que possui nos elementos materiais seus constituintes. Que traz vantagens ao espírito, mas também o limita. E eis que também é a dimensão da mentira. E a mentira só existe por existir, antes dela, uma verdade.
Este é o ponto que quero atingir com este breve relato: o câncer não trouxe a verdade, mas me levou ao confronto com o que a escondia. Me levou a atingir um estado de lucidez em que pude agir por mim mesma. O câncer, de fato, me libertou de algo que não me prendia mais do que eu me prendia. Está a perceber que conhecer a verdade é ousar, se rebelar e sair do lugar, gerar movimento, sensações e emoções?
O sofrimento que tive veio de mim mesma, depois da morte não enfrentei outro tribunal além da minha própria consciência, que me condenou não pelo que fiz, mas pelo que não fiz, por não ter tentado, por ter ficado acomodada, parada, aceitando tudo o que recebia, buscando me enquadrar nas ilusões coletivas dos conceitos sociais, seguindo cegos em minha própria cegueira. Eu própria parti minhas pernas, não me deixando sair da vida que estava a levar. Uma vida sem proveitos, um desperdício irrecuperável.
Viver e morrer, encarnar e reencarnar, agir ou não agir. Lados de uma mesma moeda, que nem sempre se pode lançar ao alto, pois uma vida material é rara, não ocorre como se pensa, a consciência não é individual sem esforço, o espírito não consegue se separar do todo sem a matéria e a matéria não é abundante ao espírito. O tempo, sem a matéria, é eterno. E uma eternidade que dura uma fração, por vezes, para aqueles que podem ser conscientes, que conseguem se realizar em vida de carne e ossos.
Esta mensagem é apenas uma oferta à reflexão, uma ponderação, o levantar de importantes questões que devem levar ao pensamento, ao tocar com sutileza aqueles que se cansam da vida e buscam apenas a sombra, apenas o conforto. Foi o que fiz, e eis-me aqui, a buscar através destas palavras um alerta, sem a força de um câncer, nem a pretensão, que raros serão aqueles que entenderão, assim como eu não entenderia, antes do meu amigo fatal. Pensa que é triste? Não é, é apenas uma outra forma de liberdade, um portal que leva à felicidade, que ainda não conheço, mas sinto existir.
Conhecer para agir. Agir por si, como indivíduo, como consciência única e preciosa. O conhecimento leva às ações livres, ao poder, à realização espiritual. Eis que meu aprendizado continua, minhas lições que ainda esbarram nas mentiras que seguem nas baixas dimensões. Se lá estou, é ainda a minha prisão, e hei de me libertar.
Às manifestações destas palavras, minhas profundas graças. Aos leitores, eis o meu melhor legado para vocês, que devem fazer algo, por si, pela luz do saber, pela forma de lidar bem com a vida, com a morte, e com o transcendental. Palavras que não possuem fim, ainda, nem triste nem feliz, pois a vida não é um romance, um conto, um compartimento fechado. Eis, talvez, a primeira mentira com que tenha que lidar, em busca da luz, em busca do conhecimento e das habilidades que lhes serão muito úteis, desde agora.
Meus agradecimentos.
Maria Cândida
[Nota: Este texto pode ser uma psicografia, um romance, uma ficção, uma canalização, um pouco de cada ou nada de tudo… mais importante do que a fonte é o teor da mensagem. Por isso, não tome nada como verdadeiro, apenas aproveite as reflexões que são colocadas e perceba em que dimensão você consegue perceber as consciências que estão por trás destas palavras, dirigidas para você, neste instante em que está a se deparar com a mensagem. Não está aqui por acaso, aproveite, portanto. Depois da morte, apenas a realidade.]
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